A Velha Ricardo Barão

Susi Tesch

No Natal de 2010 dirijo-me até o hospital Vila Nova, onde diariamente eu visitava o radialista  Ricardo Barão na UTI. Naquele dia, ao chegar no hospital recebi a notícia de sua morte, causada por uma parada cardiorrespiratória. Trabalhei ao seu lado como produtora executiva no programa Música do Mundo, e ele sempre me contava histórias marcantes sobre sua vida e reforçava: “meu tempo por aqui está acabando e tu vais escrever a minha biografia”, então, resolvi  escrever esse perfil sobre esta pessoa tão à frente de seu tempo.

Ricardo Espinosa Kurtz, filho de Waldmar Kurtz e Maria Antonietta Espinosa Kurtz, nasceu em 09 de agosto de 1954, na cidade de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Teve dois filhos, Erick e Arthur.

O “Barão” veio de um apelido de adolescência, pois ele tinha um carro vermelho com o painel cheio de relógios e o apelidaram de Barão Vermelho. Como ele achava estranho o rádio anunciar Ricardo Espinosa na produção, trocou para Ricardo Barão. Apesar desse carro vermelho, ele era apaixonado por motos, ao longo de sua vida teve diversas.

Personalidade forte,  se dizia anarquista e não gostava da mesmice, com a imitação de coisas já feitas, com a falta de criatividade. Grupos musicais têm que criar e não ficar copiando dos outros. Foi isso que fez ele se afastar do rock and roll e se dedicar à world music. Ele declarou seu anarquismo em uma entrevista para o  coletiva.net  “Se todo mundo diz que o governo está bom, eu sou contra, pois tem uma série de coisas que estão erradas. O tratamento, por exemplo, que dão para a cultura aqui no Estado é péssimo!” 

Começou a trabalhar em rádios com 17 anos na Continental AM como produtor musical do “Programa do Cascalho”, apresentado por Antônio Carlos Contursi, e seguiu seu caminho em diversas rádios na Cultura Pop, que foi a primeira rádio FM voltada para o público jovem. Atuou na Rádio Cidade e na Rádio Bandeirantes, com o famoso programa Estúdio 576 e, depois, exerceu a direção da programação musical da emissora. 

 Também atuou como produtor executivo no antigo Teatro Leopoldina, e o cargo incluía certificar-se que os contratos dos artistas fossem cumpridos, como equipamentos de palco, exigências de camarim. Esse trabalho foi enriquecedor na sua carreira, pelo contato direto com grandes artistas. Seu grande mestre em rádio foi Claudinho Pereira. Barão viajava de moto para a Argentina, onde ia para comprar discos para uso pessoal e para comercializar.

Quando ele queria se isolar, ia para o Guaíba Country Club, onde a família de seus pais possuía uma casa, e claro que também se tornava atração por lá, onde rolavam muitas festas nas quais ele acabava discotecando.

O guru Claudinho Pereira

Claudinho Pereira formado em Comunicação Social pela UFRGS. DJ, radialista, jornalista, documentarista, cineasta, diretor de TV, produtor de eventos e escritor. Uma figura ilustre no meio cultural. Foi o primeiro DJ de Porto Alegre.

Claudinho conta que conheceu o Barão no Baile dos Magrinhos, no Sava Iate Clube, no bairro Assunção. Barão atraído pela discotecagem de Claudinho foi apresentar-se. Nascia não somente uma parceria profissional, mas também uma amizade. Barão tinha 17 anos e Claudinho teve que buscar autorização com os pais do Barão, para ele poder discotecar junto em bailes e bares. Barão ia aprendendo enquanto trabalhava com seu mestre como DJ auxiliar. Também acompanhava seu mestre pelo interior, inclusive Claudinho não dirigia, então iam em um fusca azul que o Barão tinha na época. Além dos bares e dos bailes, Claudinho levou o Barão para as rádios, para o Programa do Cascalho, na Continental AM, na Itaí FM, onde o Barão atuou como produtor do Estéreo Combo, um programa de Jazz, apresentado pelo mestre. 

O guru relembra que Barão ia sempre à sua casa para ouvir música e desde cedo ele levava algum disco que ainda não tinha no Brasil para escutar. Eram muito amigos, Barão passou seu último Réveillon, em 2010 na casa do Claudinho. 

Três mulheres importantes 

Ricardo Barão contava que teve muitas namoradas. Mas três relacionamentos foram os que marcaram sua vida. Sua primeira esposa, com quem casou no civil, foi Tete Berti, a mãe de seu primogênito Erick Krau Kurtz. Tete e Barão casaram em 1977, na Capela Assunção. Barão pediu Tete em casamento no momento em que a conheceu. Logo após se casarem e se desvencilhar das formalidades familiares foram vestidos de noivos para uma festa do radialista Clóvis Dias Costa, no clube Petrópolis. O clube estava lotado e o Barão assumiu o comando do som e deixou a gurizada louca. Em 1981 nasceu Erick, o casal morava no bairro Moinhos de Vento e juntos criaram a danceteria Rolla Rock, a loja Disco Voador.  O casamento durou 8 anos, e nesse período Barão produziu as coletâneas Rock Garagem I e II, participou da fundação da Ipanema FM e produziu festivais de Rock. 

Na divisão de bens, Tete ficou com o Rolla Rock e o Barão com a loja Disco Voador.

Com Nara Lisboa, Barão teve um relacionamento estável, moraram juntos por 6 anos (1988 – 1994), residiam em Santo Antônio de Lisboa, Santa Catarina onde se conheceram, depois moraram no Country Club em Guaíba e em Porto Alegre. Com Nara ele teve programa de rádio na Antena 1 em Florianópolis, também passou pela Alegria, uma rádio popular em Novo Hamburgo. Após a separação, Nara Lisboa foi morar na França, onde continuou trabalhando com o Barão, no eixo da world music, Nara era a sucursal do Música do Mundo e mandava as novidades e notícias culturais para o programa.

Raquel Leão conheceu Barão em Porto Alegre durante uma palestra no Santander Cultural. Raquel conta que ouviu sobre a palestra quando anunciada no Música do Mundo, com entrada franca e resolveu conferir, foi a que mais participou fazendo perguntas para ele. Mãe de seu segundo filho, Arthur Leão Kurtz, nascido em 25 de junho de 2007, foi redatora do site Música do Mundo enquanto esteve ao lado de Barão. 

Da Bandeirantes para Ipanema FM

Rua José do Bonifácio, bem na Redenção, ficava a  rádio Bandeirantes. Barão tinha o programa “Studio 576” –  número da casa onde funcionava a rádio. Barão fez parte do grupo que saiu da Bandeirantes transferido para a Ipanema FM. Ricardo Barão, Nilton Fernando, Mauro Borba , Meri Mezzari, Isaias Porto e o operador de áudio Genésio de Souza deram início à Ipanema FM em 1983. Na Ipanema FM, Barão apresentava o programa Central Rock. Depois, ficou alguns anos afastado,  retornou em 2000 com o Música do Mundo que permaneceu na emissora até 2006.

Disco Voador e o Rolla Rock

Na década de 1980,  Barão e Tete Berti abriram em Porto Alegre a danceteria Rolla Rock, na Lima e Silva, no bairro Cidade Baixa, e a Disco Voador, loja de discos de rock importados e piratas, localizada no bairro Moinho de Vento.  

Tete conta que a loja possuía um álbum raríssimo que continha três discos que os Stones gravaram em um navio. Muitas músicas inéditas, só dez cópias para o mundo, e uma estava na loja. Eles copiavam e vendiam em fitas cassetes. Um dos Stones estava de aniversário e tinha até parabéns cantado por eles. Quando a loja foi fechada, o Barão presenteou a Meri Mezzari  com o disco em vinil.

Um dia Humberto Gessinger chegou na loja e pediu para o Barão um disco compacto do Ultraje à Rigor e a resposta da Velha foi “ aqui só vendemos discos de rock”, conta Alexandre Lucchese em seu livro “Infinita Highway: Uma carona com os Engenheiros do Hawaii”.

Foto: Eurico Sales / Barão na frente da loja Disco Voador, em Porto Alegre 

Discos Rock Garagem

Como produtor musical, assinou os discos Rock Garagem (1984) e Rock Garagem II (1985), que reuniu nomes então quase desconhecidos da música jovem gaúcha. Os discos atraíram atenção de gravadoras do centro do país para a cena local do Rio Grande do Sul. Gravados pela Acit. 

No lançamento do primeiro disco, Barão reuniu quatro mil pessoas em um show histórico no Araújo Vianna, no dia 14 de dezembro de 1984. 

Em 2014  o disco Rock Garagem I (1984), completou 30 anos e foi homenageado com menção na cerimônia do Açorianos de Música. O prêmio foi recebido pelo filho Erick  e ex-esposa Tete e entregue por Nilton Fernando, ex-colega de Bandeirantes e Ipanema.

O primeiro disco traz as bandas Astaroth, Fluxo, Garotos da Rua, Leviathan, Os Eles, Replicantes, Taranatiriça, Moreirinha e os Seus Suspiram Blues, Frutos da Crise, Valhala e Urubu Rei.

E no segundo disco as bandas Os Eles, Produto Urbano, Prize, Os Bonitos, Câmbio Negro, Banda de Banda, Atahualpa Y Os Panques e Spartacus

Programa Música do Mundo

Quando reencontrei o Barão morava sozinho em um hotel na Demétrio Ribeiro, no centro de Porto Alegre, e era notável sua tristeza, por falta de reconhecimento profissional. Ele estava com o programa Música do Mundo na Cultura FM. Tinha sido banido da hoje extinta Ipanema FM em 2006, a qual ele ajudou a fundar e nunca houve esse reconhecimento por parte dos colegas. Para os ouvintes, continua sendo uma figura lendária por suas histórias malucas e seus feitos no rock and roll e na world music.

Uma das coisas mais sensacionais foi o termo “Velha”, adotado pelo Barão, segundo ele , era uma espécie de título, significava que a pessoa já tinha adquirido experiência suficiente para ser uma Velha do rock and roll, ser chamado de Velha deve ser motivo de orgulho.

Conheci o Barão em 2001, na época o programa Música do Mundo estava na rádio Ipanema FM, e ia ao ar todos os domingos das 18h às 20h. Morava e tinha escritório na rua José do Patrocínio, dividia seu espaço com Mingau, um gato siamês, muito fofo, que miava pronunciando “ mingauuuuuu”. Inseparáveis.

O programa era inovador, sensacional, especializado em world music e fusões de ritmos nativos originais com o jazz e o rock. A produção do Música do Mundo mantinha intercâmbio direto com a RFI Musique da França, e mais 80 sites especializados no gênero. Fornecia informações de viagens, intercâmbio estudantil, lugares, informática, sites de música, softwares. A maioria das pessoas tinham acesso discado na internet, e o Barão foi um dos primeiros a adquirir a internet via cabo. Conseguiu até que a NET abrisse a José do Patrocínio, para levar a nova tecnologia a seu escritório ali localizado. Barão estava nesta época em seu cem por cento, ativo e produzindo muito, com nome em alta e assim permaneceu, fez muitas coisas nesse período de 10 anos.

Foi quando, infelizmente, voltou a beber. O alcoolismo era seu principal inimigo.

Em 2007 o Música do Mundo passa para a Cultura FM onde fica até seu falecimento em 25 de dezembro de 2010. O programa passou a ser gravado, pois a programação da Rádio Cultura nos finais de semana é gravada.

O Música do Mundo também era transmitido pela a Rádio Bemba FM do México, Rádio Antena Uno, do Equador, Rádio Horizonte de Portugal, Web Estação Voz e Web Rádio Pirada de Porto Alegre.

Barão era visto nos últimos anos jantando no Tablado Andaluz, que sempre patrocinou o programa Música do Mundo.

Meu mestre Ricardo Barão

Se Claudinho Pereira foi o mestre do Barão, o Barão sem dúvida foi o meu mestre. No início de 2010, numa tarde de sábado, eu estava na Programação da Rádio Pirada, da qual fui idealizadora, quando surge Ricardo Barão no MSN da rádio dizendo: “Susi, joguei a toalha pra ti”. Nossa, para mim, aquelas palavras vindas do Barão, com toda sua história, foi o máximo. Não falava com ele desde 2003. Ele me contou que o Érlon Jacques, um amigo  em comum, tinha passado o link da rádio para ele.

Então ele convidou o pessoal da rádio para a festa do Música do Mundo e também perguntou se a rádio tinha interesse em transmitir o Música do Mundo, claro que tínhamos. Naquela semana o programa estreou na programação da rádio.

Durante a festa do Música do Mundo, após 7 anos sem ver a Velha, ele veio com mais uma proposta, disse que gostaria de voltar a tocar rock, porém a condição era que eu apresentasse o programa com ele. E foi assim que nasceu, o Programa das Velhas, batizado por ele. Barão se emocionava a cada programa relembrando os anos em que esteve fazendo programa de rock. Barão foi quem tocou grandes clássicos do rock em primeira mão em seus programas nas décadas de 70 e 80. O grande diferencial do Barão é que ele buscava os lançamentos dos discos estrangeiros na Argentina, segundo ele demora uns dez anos pro disco chegar no Brasil depois de lançado e também alguns amigos traziam alguma coisa da Europa para ele.

Com ele aprendi a ser mais despojada no rádio, uma característica que ele sempre carregou e principalmente que as músicas em um bloco  precisam de sintonia entre elas. Sei que cheguei nesse ponto num dia que ouvi  que uma rádio copiou um bloco inteiro de música feito por mim, inclusive na mesma sequência. Comentei com o Barão, porque fiquei aborrecida e ele me disse “ É isso aí, se copiaram é porque está bom”.

Juntamente com o Programa das Velhas, ele me convidou para trabalhar com ele no Música do Mundo. Peguei a parte de produção executiva, recém tinha terminado o curso na Feplam, e seria difícil conseguir algo na área, pois não estava cursando jornalismo. Então mergulhei fundo nas pesquisas do que estava rolando de músicas novas na world music. Nessa época o programa contava só com a Nara Lisboa, que trazia notícias e algumas novidades, como festivais, direto da França. Ele praticamente pendurou as chuteiras, passou somente a apresentar o programa, até as edições de áudio eu comecei a fazer.

Começou a escrever poemas, queria lançar um livro.

Barão foi para o hospital no final de novembro de 2010 devido a um coma alcoólico e estava se recuperando bem. Me pediu para ver uma clínica para se tratar. Fiquei bem empolgada, pois a última vez passara dez anos limpo. Ele estava feliz naquela tarde pois a Tete tinha ido visitá-lo. Contou que dançaram no quarto do hospital. No dia seguinte sofreu a parada cardiorrespiratória e ficou em coma induzido até morrer. 

O Barão foi o primeiro amigo que partiu. Logo após a sua morte eu fiz algumas discotecagens de world music no Jardim Secreto, um  bar na Cidade Baixa. Lembro de uma frase na qual reflito até hoje que seu filho Erick me disse “ Vocês são iguais”. Acho que esse igual é na rebeldia, talvez eu seja meio anarquista também. Também por gostar de muitas coisas que ele gostava, como a rádio e a música. Hoje sigo seus ensinamentos, e ele sempre dizia: “ Segue teu coração”. O período da internação e sua morte me aproximou de muitas pessoas queridas que também conviveram com ele.

O ROCK

Ricardo Barão

Por um momento na história
Todos os jovens do mundo se uniram numa só voz
O rock
Era como se fossemos todos da mesma turma, da mesma esquina
Uma só linguagem, uma só postura, um só grito de guerra
Lutávamos todos juntos contra toda esta porra de sistema
Não existiam americanos, ingleses, latino americanos. Éramos um só
Com a guitarra como arma contra a intolerância, o fascismo e tudo que o lado ruim da humanidade representava.
Éramos todos jovens guerreiros sob a bandeira do rock
A juventude passou, a revolução acabou
O sistema venceu
Agora novamente somos latino americanos, eles são os malditos americanos e os pedantes ingleses
Velhos demais para o rock, jovens demais para morrer