A Mansão da Tia Velha na Barros Cassal

Susi Tesch

A rua Barros Cassal encontra-se encravada entre a avenida Voluntários da Pátria e a avenida Osvaldo Aranha. Passando pelos bairros: Floresta, Independência e Bom Fim.

Entre os homenageados da Revolução Federalista de 1893, na qual deixou muitos nomes nas placas das ruas de Porto Alegre, o jornalista, Dr. Barros Cassal recebeu a  homenagem em 1916, quando a rua Aurora passou a ter seu nome. 

A extensa rua guarda inúmeras histórias. Cenário underground de Porto Alegre, com o bar Garagem Hermética (1992-2013). Teve também a Fun House, casa histórica conhecida como Casa Frasca, que foi alugada pela banda Cachorro Grande, onde os integrantes moravam, produziam músicas e  organizavam festas a partir de 2000. Em 1980 tinha o Líder, bar e restaurante na esquina da Independência com a Barros, lugar que reunia uma boemia intelectualizada de esquerda.

A rua consta no mapa que localiza espaços de violações dos direitos humanos durante a ditadura militar em Porto Alegre. Trata-se da Casa de Luísa Felpuda, um bordel destinado ao público homossesual, conhecido como a “Mansão da Tia Velha”. O local entrou no mapa como resistência, uma vez que a homossexualidade não faz parte dos padrões de “moral e bons costumes” pregados pela ditadura. O bordel foi criado nos anos 70 por Luís Luzardo Corrêa, a Luísa Felpuda, como gostava de ser chamado.

Em primeiro de maio de 1980, o assassinato da Felpuda ganha as capas dos jornais e ocupou as páginas policiais durante um mês, até a suposta resolução do crime. Luísa foi assassinada em sua casa na Rua Barros Cassal, onde ela alugava quartos para encontros homossexuais e oferecia serviço de michê (garoto de programa). 

Na noite de 30 de abril, a casa situada na rua Barros Cassal, 525 estava em chamas, quando o estudante André Luiz chegava à pensão que morava na mesma rua e junto com duas pessoas desconhecidas entraram na casa pelos fundos para tentar apagar o incêndio. Conseguiram retirar uma pessoa com vida, que era Luidoro, mas veio a falecer no hospital devido a hemorragia cerebral. Luidoro era o irmão de Luís, que por conta de um derrame cerebral, estava inválido.

Segundo o historiador Tiago Vidal Medeiros em seu trabalho de conclusão do curso do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, três personagens tornaram-se objetos privilegiados do discurso jornalístico e foram constituídos como sujeitos sexualmente desviantes, sendo esses a própria Luísa Felpuda, sujeito homossexual; Joelma, sujeito travesti que trabalhava na casa; e Jairo, michê que fazia programas e assassino confesso. 

Luísa Felpuda

Foto: Publicada no jornal Lampião da Esquina, em junho de 1980

Luís também era um aposentado do DEPRC –  Departamento Estadual de Portos, Rios e Canais, onde trabalhou por 38 anos até sua morte. Luis e Luidoro eram de uma tradicional família da fronteira do estado e sobrinhos de João Batista Luzardo, embaixador na Argentina e Uruguai, nas décadas de 1940 e 1950.

Pessoa acolhedora, educada, sensível, delicada em sua casa. Na Mansão da Tia Velha o ambiente completamente fechado ao homossexualismo com segurança e discrição para os encontros amorosos. Tanto no meio homossexual, quanto para os vizinhos e colegas de trabalhos, era visto como uma pessoa muito querida e respeitada.

Ex-moradora da casa 505 na mesma quadra, a manicure, Edi Terezinha, conta que cresceu na rua Barros Cassal, “as luzes vermelhas do bordel e o movimento de militares fardados que frequentavam a casa chamavam sua atenção. Luís passeava com seus cachorros pela rua sempre bem vestido, muitas vezes com um sobretudo e distribuía balas para as crianças da rua, inclusive para ela. Querido pela vizinhança, pois apesar do intenso movimento em sua casa, a casa fechava cedo e não havia barulhos, nem música, nada que incomodasse os vizinhos”.

Joelma a travesti

Joel Borges da Silva, conhecido como Joelma, uma travesti, entre mais cinco suspeitos, foi a única pessoa apontada como principal suspeita pela mídia, teve foto divulgada em jornais da época, enquanto outros suspeitos tiveram o nome em sigilo. A travesti trabalhava na casa e era a cuidadora de Luidoro desde 1976.

“As suspeitas sobre a travesti, desencadearam uma operação especial da polícia que durante a madrugada percorreu a zona de prostituição de travestis da cidade nas avenidas Independência, Farrapos e outras , levando dezenas delas para prestar depoimento na delegacia”, relata Tiago em sua dissertação.

No mesmo dia em que o assassino Jairo confessou o crime, Joelma se apresentou com seu advogado na delegacia, declarou ser enfermeira de Luidoro, negando seu envolvimento com o bordel e o crime. Disse que saiu da casa de Luísa às 19h na noite dos assassinatos.

Joelma colaborou com as investigações revelando nomes de frequentadores famosos do bordel.

Foto: Museu da Comunicação Hipólito José da Costa – pelo TTC do Tiago Medeiros
Presumida foto de Joelma publica por ZH em 02 de maio de 1980

Jairo o assassino

O assassino dos irmãos se entregou à polícia confessando a autoria do crime, Jairo Teixeira Rodrigues, um michê da casa. Ex-soldado do exército, 19 anos, contou que na noite do dia 30 de abril foi na casa de Luísa para fazer programas, como de costume, mas não tinha clientes naquele dia. Jairo acabou por fazer programa pela primeira vez com Luísa, após o programa a vítima foi ao banheiro e ele aproveitou para roubar dinheiro, um anel de brilhantes e um relógio. Mas Luísa percebeu e o atacou com uma enxada.

Foto de Jairo publicada pelo Correio do Povo em 3 de maio de 1980
Fonte: Museu da Comunicação Hipólito José da Costa – pelo TTC do Tiago Medeiros.

O crime

Foi Darcy Penteado, artista plástico, cenógrafo, figurinista, ator teatral, desenhista e fundador do jornal Lampião da Esquina, primeiro jornal brasileiro para o público LGBTQIA+, que melhor detalhou os fatos do crime em seu jornal.

Segundo reportagem assinada por Darcy, Jairo confessou o crime declarando intenção de roubar. Apanhado em flagrante, matou os dois irmãos, com requintes de sadismo, e tentou incendiar a casa. Após fazer programa com a vítima, aproveitou uma ida de Luísa ao banheiro para roubar, surpreendido em sua pilhagem, matou os irmãos com golpes de uma enxada, castrou Luís e ateou fogo na casa e fugiu.

Em sua defesa, o advogado Nei Soares de Oliveira, a morte  foi homicídio e não latrocínio, não houve agiotagem nem uso de faca. Seu cliente matou em um momento de forte emoção. Defendeu a tese de pressões familiares e desequilíbrio mental. Jairo alegava ser vítima do ambiente familar em que vivia e que já havia tentado suicídio.

Em suas declarações dizia ser macho, que o ambiente de trabalho na Mansão da Tia Velha era bom, relatava sentir nojo ao transar com homens, sempre era o parceiro ativo com seus clientes. Demonstrava preocupação com sua imagem de “machão” durante o inquérito. Tentava culpar os homossexuais por tudo que deu errado na sua vida.

Já o Instituto Médico Legal anunciou que ambas as mortes foram causadas por hemorragia cerebral, consequência de múltiplas fraturas dos ossos do crânio e a polícia desmentiu o fato de Luís ter sido castrado.

Porém para o delegado Volnei e para a mídia Joelma continuou sendo suspeita, como cúmplice, pois era um crime brutal, para que o assassino Jairo tenha cometido sozinho, apesar de ter confessado o crime.

No dia 8 de maio a polícia revelou que o relógio não foi roubado da vítima e sim arrancado a força de seu pulso.

Como diversos pontos do processo estavam em aberto, as últimas notícias encontradas foram sobre uma acareação conjunta, com o professor Júlio, que esteve na casa na noite do crime junto com as vítimas, onde fica claro para o delegado que Jairo cometeu o crime sozinho, o que resultou em um pedido de internação do assassino no Manicômio Judiciário do Estado, por solicitação do delegado Valnei. Com o inquérito policial encerrado, o caso desaparece das páginas dos jornais, sem sabermos se realmente se o Judiciário aceitou o pedido da Medida de Segurança para Jairo.

Foram poucos homossexuais famosos, que não foram à Mansão da Tia Velha, em  cuja porta, em outros tempos, passava o bonde da Carris. Atualmente encontra-se um edifício residencial na cor verde, no número 525 da rua, onde situava o bordel. Uma rua com um passado efervescente, hoje pacata, onde nada remete ao seu passado de agitação cultural.